sábado, 29 de janeiro de 2011

O sorriso de Guido

Rosto queimado e escarrado durante séculos volta a levar pavor a tiranos
Trecho do romance em quadrinhos "V for Vendetta", de Alan Moore CLIQUE AQUI PARA BAIXAR O EBOOK EM PORTUGUÊS, DE GRAÇA Na trama o anarquista que pretende derrubar um futurista Estado repressor usa uma máscara inspirada em Guy Fawkes
Por Leandro Cruz - in Jornal do Povo, Rio Grande do Sul, 29/01/2011


Boneco representando Guido Fawkes é
queimadono feriado de Bonfire, na Inglaterra.
Tradição é memorial de terror estabelecido
pelo rei Jaime em 1605,  para lembrar o
destino dos católicos que o desafiaram

no episódio que ficou conhecido como
"A conspiração da pólvora"
Por quatro séculos seu corpo foi queimado nas praças todos os anos, enquanto era insultado com os nomes mais infames, exatamente como o rei James mandou. Agora aparece sorrindo por aí, não só da cara do Estado que mandou que o esquartejassem, mas de cada vez mais e mais governos corruptos e autoritários. O rosto aparece sorrindo nos sites hackeados e nas convocações de apoio às manifestações que, esse mês da década, sacudiram Tunísia, Egito, Iêmen, Argélia e se espalham rapidamente, derrubando regimes e leis autoritárias como numa sequência de dominó.

A face com sorriso largo, maçã do rosto rosadas, bigode e fina barbicha que se tornou uma espécie de símbolo e catalizador dos recentes grandes levantes civis do mundo árabe, já havia sido visto na Europa, nos EUA, e Australia em protestos contra a aprovação de leis que restringem a liberdade de expressão na Internet, em apoio ao Wikileaks, contra o governo Berlusconi, entre outros. Mas, quem é esse cara?

Guido Fawkes (nasceu chamando Guy) era católico e Inglês, o que não era nada fácil de ser desde que o rei Henrique (Henry) VIII decretou que de seu tempo em diante, quem mandaria na religião seria ele. Fundou a Igreja Anglicana e ordenou que os padres se reportassem exclusivamente a ele e ao seu “capachão”, o bispo de Canterbury. Mas boa parte dos católicos apostólicos romanos não aceitaram submeter. A perseguição não tardou.

Cartaz para a internet convoca voluntários
anônimos para ajudarem a derrubar e
hackear os sites do governo egípcio em
apoio aos manifetantes de lá.
O Cartaz mostra uma máscara funerária
egípcia com o sorriso da máscara de Fawkes
As tensões entre católicos anglicanos e romanos se agravariam paulatinamente. A perseguição aos "romanos" era intensa. Os templos haviam sido tomados e padres que se declarassem leais ao papa eram expulsos, presos e mortos. A aristocracia se converteu, é claro. A corrupção, o autoritarismo e a violência do Estado eram intensas. Declarar-se chefe da religião é só o ponto máximo da tendência centralizadora que os Tudor vinham promovendo.

Continuar católico romano, era portanto também uma atitude política, de afronta e contestação ao absolutismo, principalmente nesse caso em que praticamente inexistiam diferenças teológicas. Podemos falar sobre as mulheres de Henrique Tudor e os detalhes políticos do Sisma de 1534 em outra ocasião. Nos anos de 1600, a divisão e o clima de violência estavam consolidados.

Então, em 1605, um grupo de católicos decidiu botar fim ao Estado absolutista, explodindo o prédio do Parlamento no dia em que o rei Jaime estaria presente para seu discurso aos lords (uma espécie de Senado formado por bispos anglicanos e aristocratas que ocupam o cargo vitalícia por direito hereditário).
Foto de Renata Takahashi, colaboradora do blog,
mostra protestos em Sevilha, Espanha, contra a
 prisão de Julian Assange e a proposta de lei de
controle  de informação na Internet conhecido lá
como Ley Sinde(o equivalente ao brasileiro projeto
 Lei Azeredo), deve ser votada esse ano

Fazendo o rei e os lords voarem pelos ares, os conspiradores acreditavam que poderiam coroar uma cabeça católica e instalar um sistema político menos injusto e com liberdade religiosa. Guido Fawkes vinha de carreira militar, era perito em explosivos, e por isso foi o encarregado de guardar e preparar os 36 barris de pólvora no subsolo do prédio.

A conspiração foi descoberta. Há historiadores que sustentam que isso ocorreu por obra de algum traidor dentro do grupo, outros que a informação vazou sem querer quando um deles tentou alertar pessoas inocentes a não comparecerem ao Parlamento no dia 5 de novembro para não correrem perigo de vida, mas a mensagem teria sido interceptada.

Fawkes foi preso e torturado, enforcado, esquartejado. Na tortura, Fawkes resistiu o quanto pode, para dar tempo aos companheiros e no fim entregou só nomes daqueles que já estavam presos e já sofriam a mesma sorte.

cartaz convoca para ações na Tunísia,
 paísque há duas semanas era considerado
 pela Anistia Internacional o país que mais
reprimia a liberdade de expressão


O rei ordenou então que todo dia 5 de novembro lembrada e celebrada “A Salvação do Rei”, que se acendessem fogueiras nas ruas como um memorial. Assim é feito até hoje. Versos ofensivos aos católicos (retratados sempre como desonrados, traidores da pátria) são entoados por grupos anglicanos. Bonecos simbolizando Fawkes são queimados como se faz com o na "Malhação de Judas" no Brasil, só que em festas populares noturnas verdadeiramente grandes e com desfiles oficial, onde expõem o boneco com a corda no pescoço pelas ruas da cidade, antes de chegar ao local da fogueira.


Mas Fawkes é ainda uma figura controversa, sendo chamada de “santo” por uns, de terrorista e traidor por outros. Virou referência de movimentos de contracultura, em especial o punk. E, nos anos 80 do século XX ganhou uma homenagem: inspirou o romance em quadrinhos “V de Vingança” de Allan Moore.



stiker colado por Londres
A trama dessa obra de ficção se passa numa Inglaterra futurista, um estado autoritário em que até as artes são proibidas. O anarquista cognonimado “V”, planeja completar o que Fawkes não conseguiu, explodir o parlamento e o Estado numa série de atos com grande carga teatral, usando uma máscara inspirada nos bonecos queimados no 5 de novembro.

Não vou contar o final de “V de Vingança" para não estragar, mas conto que no mundo real a máscara do homem que quase mudou a história do Ocidente para sempre está se tornando um símbolo de resistência ao autoritarismo. Por isso manifestantes nas ruas e também na Internet (de modo muito especial o grupo conhecido como Anonymous, que derrubou os sites do Paypal, Visa e Master em retaliação à prisão de Julian Assange e raqueou sites governamentais nesses países onde estão acontecendo levantes). O rosto sorridente e bigodudo aparece pichada em muros de instituições como quem diz: “quem ri por último, ri melhor”.
Gravura do século XIX mostra prisão de Fawkes
antes que ele explodisse o Parlamento com
o rei dentro. Além dele foram condenados Thomas

Bates, Robert Wintour, Christopher Wright, John
Wright, Thomas Percy, Robert Catesby
e Thomas Wintour 

Há vários barris de pólvora acumulados pelo mundo, mas esses barris estão acumulados nos corações dos descontentes, como o jovem comerciante de frutas Tunisiano que iniciou o levante que levou à deposição do ditador Zine El Abedine Ben Ali e se espalhou por outros países. É importante notar a falta de centralização das ações e como ciberativistas de outros países têm contribuído para sabotagem digital dos governos e na ajuda à mobilização (via twitter, facebook, etc). Pelo jeito, o rosto que foi alvo de cusparadas da Direita inglesa nos últimos 400 anos, ainda dará muito pesadelo aos tiranos do nosso tempo.





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sábado, 22 de janeiro de 2011

Sudão, Terra fértil para a morte:

No tabuleiro mais visível de uma nova "Guerra Fria", o que bugigangas de R$ 1,99, o Egito, o Google e o George Clooney têm a ver com o palco do maior genocídio do século XXI e sua divisão
Em 1993, o fotógrafo Kevin Carter flagrou um urubu aguardando uma menina morrer de desnutrição para saciar a própria fome no Sudão

Parte 1
Jornal do Povo, 15/01/11
Brinquedos, ferramentas de utilidades domésticas, armações de óculos, motos, vuvuzelas e até, ironicamente, imagens de santos ocidentais. Tudo de plástico, tudo vindo da China, atualmente o segundo maior importador de petróleo do mundo. Há muito tempo que o Partido Comunista Chinês virou só mais uma grande corporação, a diretoria de um país-empresa. Capitalismo de Estado. E o petróleo, que fornece a energia e matéria-prima para o plástico, cada vez mais vem da África, boa parte do Sudão. E é o petróleo que deve garantir ou uma paz duradoura ou uma guerra ainda mais violenta no Sudão agora que esse país que sempre viveu em guerra civil está próximo de se dividir em dois graças ao plebiscito ocorrido essa semana.

E se o Brasil tem Paulo Maluf, o único deputado do mundo na lista de procurados pela Interpol, o Sudão tem Omar Hassan al-Bashir, o único presidente - em exercício - condenado pela Corte Internacional de Crimes de Guerra. O mais assustador é que a maioria dos crimes foi cometida justamente contra minorias do próprio Sudão. Mas a China, principal aliado comercial do país, membro do conselho de segurança da ONU, impediu intervenções e sanções internacionais contra o governo de Bashir.

Viajemos alguns milênios, quando aquela região da África ainda era conhecida como Núbia e formava um império megalítico que acabou esfacelado por outras potências do mundo antigo, de modo especial seus vizinhos do norte, os egípcios (mas ainda hoje estão de pé ali mais pirâmides que no atual Egito). Já nos primeiros séculos da nossa era, comunidades cristãs começaram se formar ali, até que na expansão islâmica do século VII os muçulmanos unificaram a região. O sul, de maioria negra, não se converte e vira escravo dos povos árabes do norte. Embora o domínio muçulmano sempre prevalecesse, as definições de relações de poder e fronteiras eram instáveis, até que em 1822 o Egito conquista e unifica o Sudão. Para o Egito sempre foi importante o controle do Sudão, pois é de lá que desce a água do Nilo, que permite que a vida no nordeste da África aconteça.

Muhammad Ahmad bin' Abd Allah,
o "Mahdi" líder radical islâmico
sudanês, que no século XIX desafiou
o domínio egípicio
Mas em 1881, aproveitando a instabilidade política do Egito nas suas disputas pelo Canal de Suez, um líder radical xiita, Muhammad Ahmed bin' Abd Allah, se insurgiu contra a dominação do Egito (considerado laico e ocidentalizado demais). O cara tinha tanta moral que os xiitas sudaneses acreditaram que ele era o Mahdi.

Parêntese sobre o Mahdi. Os muçulmanos xiitas acreditam que, depois de Maomé, Alá haveria de enviar no futuro um novo profeta e salvador, uma espécie de “messias”, só que muçulmano, o Mahdi. Ou seja, o líder nacionalista muçulmano era visto como sendo de natureza divina. Assim Mahdi conquistou a independência do país e passou a governar com popularidade absoluta entre os muçulmanos, para desespero das minorias do sul. Mas esse Estado teocrático não durou muito. Em 1889, como “messias” havia morrido, os ingleses (que mais do que ninguém queriam sossego no Mar Vermelho), juntamente com os egípcios, retomam o Sudão, que passa a ser um condomínio. Ou seja, diversos grupos étnicos e religiosos sendo uma só colônia e de duas metrópoles. Isso é que é estar subjugado!

A dominação binacional resiste às duas guerras mundiais do século XX. A Inglaterra só concede independência ao país em 1956, porque desde o ano anterior recrudescia a violência interna entre o norte, majoritariamente árabe xiita, e o sul, negro, com cristãos, animistas e sunitas. A Inglaterra não queria ter nada com isso. Ainda “quebrada” com o desgaste da guerra, lavou as mãos e saiu fora.

Ninguém se importou em fazer uma transição ou dar autonomia pro sul, nem nada disso. Simplesmente largaram. Isso é exemplo do que aconteceu com a África toda. Os impérios industrializados europeus do século XIX dividiram a África em fronteiras artificiais, separando grupos étnicos e tribos aliadas e obrigando grupos rivais a conviverem em uma mesma delimitação política. Depois ninguém reorganizou nada, claro. Deixou a desgraça feita. As guerras civis e tribais na África, em todas as ex-colônias, ainda devem se arrastar por décadas (ou séculos, se houver séculos).

Num lugar com pouco pasto e muito deserto é fácil para que os grupos se odeiem e se enfrentem. Mas no Sudão isso era o cotidiano e a política de Estado: massacres, enfrentamentos, escravização, estupros. As ações de reação dos grupos armados do sul não ajudavam a melhorar em nada. De tempos em tempos eram anunciadas e quebradas tréguas. Mas a coisa foi piorar mesmo foi em 1983, quando o presidente decretou a sharia, a lei islâmica, com punições que iam do açoitamento à forca até mesmo para crimes como praticar outra religião. É claro que o sul não ia aceitar.

Eles nem falavam em independência, a essa altura só queriam pelo menos se livrar da sharia, ter uma limitada autonomia. Mas em 89 a coisa desanda de vez, porque um golpe militar leva Omar Al-Bashir ao poder e esse endurece com os rebeldes. Aliás, contra todo o sul. Bashir se mantém até hoje no poder, desta vez por teatrais eleições nem um pouco livres.
Omar Al-Bashir, único  chefe de Estado condenado por
crimes contra a humanidade ainda em exercício;
documentos vazados recentemente pelo Wikileaks comprovam
que além de poder e religião, ele também tem outra motivação.
Bashir desviou 9 BILHÕES de dólares do potróleo do País
e depositou em bancos britânicos
Parte 2
Jornal do Povo, 22/01/11



Em 1989, o Sudão, já maltratado pela guerra civil entre o Norte (de maioria árabe, muçulmana, xiita) e o Sul (formado por diversas tribos negras, cristãos, animistas e muçulmanas sunitas), viu subir ao poder, via golpe de Estado, Omar Al-Bashir, que permanece no poder até hoje por eleições nenhum pouco livres. Bashir inicia uma perseguição ainda maior às minorias do Sul.

Em acampamente, grupo da milícia Janjaweed (algo como
"diabo montado a cavalo", em dialeto local) posa para foto.
Para eles, tudo não passa de "guerra santa";
para seus 2 milhões de vítimas significam a morte;
para China, tudo não passa de "negócios"
Nos anos 90, a China iniciou a exploração de petróleo, foi um dos últimos lugares em que acharam o ouro negro, justamente quando a violência começa a aumentar. E em 2003, um holocausto não televisionado começa. Gangues e milícias islâmicas (os Janjaweed), grupos mercenários treinados, pagos e acompanhados por soldados do Exército oficial entram em cidades e aldeias da província de Darfur assassinando, estuprando e incendiando. O objetivo era eliminar tanto as minorias negras sudanesas quanto de tribos de outros países que haviam se alojado ali justamente como refugiados, fugindo de outras guerras civis. A inimizade milenar que um dia não passava de guerra tribal por moitas para cabras pastarem, agora era o conflito mais sangrento em andamento, um genocídio. A área estava sendo “limpa” pela maioria no poder para garantir o “controle” da região.

Uma equipe da BBC é a primeira a flagrar carros e aviões militares de fabricação chinesa sendo usados pelo governo Bashir. A China oferecia o equipamento e o treinamento para pilotos dos seus caças. A denúncia mais grave (comprovada por fotos e filmagens): o Sudão estava pintando aviões militares de branco (o que é proibido pela lei internacional) de modo a confundir a população de Darfur, que achava sempre se tratar dos voos de ajuda humanitária, quando eram surpreendidos por bombas e rajadas de metralhadora vindas do céu. A ajuda humanitária de verdade, quando chegava, tinha a maior parte desviada para alimentar os próprios milicianos exterminadores Janjaweed.

Para se ter uma ideia: mais de 5 milhões já morreram vítimas da violência no Sudão desde sua independência, em 1956. Desses, 2 milhões foram durante o governo Bashir, 450 mil só nos conflitos de Darfur, em meados da década 2000. Bashir foi condenado por crimes de guerra (se tornando único condenado por esse crime ainda em exercício como chefe de Estado). No conselho de segurança da ONU, a China veta todas as resoluções contra o governo sudanês.

Povoado negro em Darfur após passagem da milicia Janjaweed
usando camelos, cavalos carros e armas chinesas
Quando os mortos em Darfur passavam dos 400 mil e os desalojados passavam de 2 milhões, a comunidade internacional desenhou um acordo de paz entre os líderes da resistência do Sul e o governo. A intenção da China, verdadeira articuladora do referendo que terminou na sexta-feira passada, é manter sob sua influência os dois Sudões, pois é no Sul que fica a maior parte dos poços de petróleo e no Norte fica a saída para o Mar Vermelho (de onde é exportado).
Os observadores da China, da ONU e da União Africana aprovaram o referendo de 2011, conforme notas oficiais dessa semana. O resultado é que mais de 90% do Sul aprovou a independência, que deve passar a valer a partir do dia 9 de julho desse ano. Daqui pra frente teremos apenas perspectivas sobre o que pode acontecer com os dois Sudões:

No norte, Bashir deve aceitar o resultado do referendo, dificilmente moverá guerra contra o vizinho do Sul, pois depende do petróleo produzido lá (a maior parte dos poços do Sudão fica no Sul), e lucrar com o escoamento (a saída para o Mar Vermelho fica no Norte). Sabe que Pequim prefere que daqui pra frente, apartadas as pessoas, a situação fique em paz para a empresa chinesa continuar sugando seu petróleo, que abastece sua crescente indústria de tudo. Para agradar os mais radicais, Bashir deve endurecer a sharia (lei islâmica) no Norte (as mulheres serão as que mais sofrerão). O maior perigo a curto prazo é se os ultranacionalistas do Norte, insatisfeitos com a cessação, derrubarem Bashir (encoleirado pela China) e entrarem em guerra contra o Sudão do Sul.

O ator George Clooney esteve no Sudão do Sul semana
 passada,para acompanhar o referendo e promover um
projeto de sétélites de observação da região desenvolvido
pelo governo dos EUA em parceria com a privada Google;
durante a visita ele pegou malária, mas ao contrário dos
sudaneses, ele terá tratamento médico nos EUA
O Sudão do Sul já nasce com 90% da população abaixo da linha da miséria. O país enfrenta séria carência de alimento, água e remédio. Enquanto isso, a CNPC (China National Petroleum Corporation) extrai o petróleo. Os Estados Unidos pensam no futuro. Querem agora ganhar corações e mentes no Sudão para, quem sabe, um dia a Chevron substituir a CNPC em algumas concessões. Nas igrejas neopentecostais norte-americanas o conflito é visto como se tudo fosse uma “simples” disputa entre o Islã e o Cristianismo, e agora preparam missionários para irem ao Sudão ajudar seus “irmãos cristãos”. Existem redes sociais na Internet em que jovens neopentecostais podem concorrer a uma “oportunidade de missão”, como se inscrever para um intercâmbio (recebendo bolsa e tudo). Mas enquanto os cristãos do Sul estavam sendo exterminados, vendidos como escravos, famintos, nus, expulsos de suas casas, ninguém queria ir pra lá. Weber explica:

Esse movimento de igrejas norte-americanas irem “reformular” o Cristianismo, que tem mais de 1.600 anos no Sudão, pode trazer consequências catastróficas, basta ver como tele-evangelistas se referem às religiões animistas da África: “Bruxaria”. E bem sabemos como os cristãos ocidentais costumam tratar as “bruxas”. E tudo o que os sul-sudaneses não precisam é de tensão religiosa entre os grupos sulistas. Vale bem, muito a pena observar o Sudão, pois ele será o tabuleiro mais visível dessa espécie de “Guerra Fria” que os Estados Unidos, capitalistas liberais, e a China, capitalistas de Estado, devem travar pelas próximas décadas.

Reportagem da BBC comprova que além de armas de mão, Pequim vendeu caças e ofereceu treinamento para que o governo de Bashir "limpasse" a provícia de Carfur

sábado, 8 de janeiro de 2011

Porque Cezar não deve dar Cesare ao "César"

Palermo, 5 de setembro de 1979, o juiz Cesare Terranova,
membro da Comissão Parlamentar Antimáfia, acabara de ser
morto por terroristas da direita mafiosa
"A justiça dos anos de chumbo recorreu regularmente à tortura. Foram denunciados treze casos só no primeiro processo coletivo dos PAC. (...) Os tribunais italianos, quase todos dirigidos por juízes associados ao governo de Democracia Cristã, condenaram 4.700 ativistas de extrema esquerda, e deixaram em paz todos os de extrema direita, embora estes tivessem causado muito mais mortes com seus atentados a bomba"
Frédérique Audoin-Rouzeau, historiadora

Roma, 2011, arredores da embaixada brasileira. Homem passa em frente a cartaz que defende a liberdade de Cesare Battisti. Eles traziam slogans como “a perseguição acabou” e agradeciam a “coragem” do Brasil. O cartaz está colado em cima de um outro de apologia ao neofascismo.




por Leandro Cruz (publicado originalmente em Jornal do Povo, 08/01/201
Países que tomam a Justiça e a Democracia entre seus valores não podem compactuar com a perseguição político-ideológica, devem dar asilo a dissidentes ameaçados em países onde não têm direito a defesa e a um julgamento justo, como os tibetanas perseguidos por Pequim, os dissidentes cubanos perseguidos pelos Castro e iranianos perseguidos pelos Aiatolás. Exemplos clássico de asilo político são dos intectuais e artistas judeus que fugiram do Nazismo para os EUA (Einstein, Freud, Fritz Lang...) que tanto enriqueceram em conhecimento e cultura o país que os acolheu.


Outro importante valor democrático é o livre acesso à informação, de todos os seus ângulos. Mas no Brasil a grande mídia que deveria defender a Democracia vem sendo ou covarde ou preguiçosa no que diz respeito ao caso do escritor italiano Cesare Battisti. Mesmo com documentos da Justiça e da História italiana tão à disposição para ser analisado e apresentado ao público, há editores que preferem comprar o discurso que vem pronto de Roma e repetem “crucifica-o!”. Reproduzem: “Terrorista”!


O hoje maduro e pai de família Battisti, era mais um jovem idealista nos anos 70, os anos de chumbo da Itália, um país que ainda não havia se encontrado no pós-guerra, em que milicias fascistas e mafiosos dominavam bairros inteiros, ocupavam cargos importantes na política e matavam seus opositores. A oposição ia para as ruas e os protestos eram repelidos com violência. Promotores e juízes que ameaçassem os interesses desses chefões eram vítimas de atentados da extrema Direita.


Diante disso, parte da esquerda se desiludia da luta pacífica e institucional. Battisti, como tantos outros daquela época, acreditava que o projeto político comunista (nos moldes russos) era uma alternativa viável àquela realidade púmblica. O trem da história ainda não havia passado para provar o que não e a “cortina de ferro” não deixava ver que do lado de lá também havia suas mazelas e autoritarismos.


Passou por diversas entidades trabalhistas, até ser convidado por Arrigo Cavallina (ideólogo e fundador) a ingressar na organização conhecida como Proletários Armados pelo Comunismo, que propunha ações de sabotagem e expropriação. Era um grupo pequeno e de ações bem menores se comparado às Brigadas Vermelhas. A principio a idéia era sabotar a Alfa Romeo e libertar presos políticos de carceragens. Mas em 1978, um carcereiro acusado de torturar presos é morto pelo grupo. Nessa primeira mancha de sangue, o PAC começa e perder seu foco. Cesare sugere a dissolução do grupo, mas é chamado de traidor e forçado a permanecer.


Em 16 de fevereiro de 1979, o dono de uma joalheria de Veneza e o de um grande açougue de Milão são mortos pelo PAC (impossível que um único militante tenha executado ambos disparos por obvias razões de distância geográfica). Os mortos, Lino Sabbadin e Pierluigi Torregiani pertenciam a grupos da extrema direita italiana e já tinham já matado militantes de esquerda, o que não justifica seu assassinado, mas precisa ser registrado aqui já que outros veículos omitem. Outra coisa omitida é que o próprio filho de  Dom Torregiani declarou que Battisti não estava presente na ocasião da troca de tiros que matou o pai.

Dois meses depois, um policial acusado de ser torturador e miliciano também é morto pelo grupo que não tardaria ser desarticulado.


Quando tem a chance, Battisti atravessa as Alpes a pé. Vai viver como refugiado na França, depois no México, depois na França de novo. Casou. Foi pai. Escreveu livros.


Enquanto isso Battisti teve procurações falsificadas (o que está comprovado por laudo anexo aos autos do STF) para que fosse julgado sem direito a se defender. Pietro Mutti e Cavalina, líderes do grupo que haviam dado outras versões, para receber o benefício de delação premiada, decidem emputar a Battisti, o peixe pequeno que estava em segurança em outro país, toda a culpa de todos os atos do grupo. Battisti deveria pagar, se um dia fosse pego, pelos pecados de todos os seus companheiros.


Contra ele se empenha Silvio Berlusconi, dono da Fininvest italiana e do maior grupo de TV e jornal do país do qual é primeiro-ministro (cargo para o qual as eleições não são diretas). Berlusconi é acusado de corrupção e envolvimento com a Máfia e até pedofilia, mas o Senado, que ele controla, o blindou com uma lei que impede que ele tenha de prestar à Justiça esclarecimento dos crimes dos quais é acusado. O capo é intocável.

É gritante a injustiça: um não pode se defender, outro está acima da Lei e não precisa se defender, como um “César” do velho Império.
Após ganhar voto de confiança no Parlamento, político
 beija a mão de Silvio Berlusconi, imune à lei e no poder
apesar da intença pressão popular
Enquanto viveu na França, onde intelectuais como Fred Vargas, Bernard-Henry Lévy, Daniel Pennac defendiam o escritor refugiado, a Itália respeitava a soberania daquele País. Quando Cesare veio para o Brasil e acabou detido, Roma achou que o Brasil agiria com a subserviência muda que eles sempre esperam do “Terceiro Mundo”, e se frustou quando no fim de 2010 o Presidente concedeu asilo ao escritor. Berlusconi não se conforma que o Brasil não tenha dado Battisti a ele como fez com Olga Benário a Hitler.

Mesmo assim, Battisti continua preso no Basil, por uma decisão antirepublicana do ministro Cezar Peluso. Sabemos que, se entregue, será dado a Cesare o que não é de Cesare. Não estou defendendo o projeto político nem os meios de atuação do extinto PAC, mas defendendo o direito à Justiça imparcial e à palavra para todo homem e também o direito da população brasileira de ser apresentada a uma verdade mais ampla. A grande mídia está negando a esse homem o mesmo que lhe foi negado no seu controverso julgamento. Lá a sentença (perpétua com privação da luz solar) já foi proferida de maneira arbitrária e é essa impossibilidade de defesa que torna Battisti um perseguido precisa de asilo.

Na mídia circulam mais fotos dos gatos pingados pedindo a extradição de Battisti em frente à nossa embaixada do que dos milhares que protestam contra o governo Berluconi no centro das principais cidades da Itália. Enquanto o Judiciário brasileiro parece mais sedento de vingança por 4 italianos mortos nos anos 70 do que por Justiça para os 19 mortos em Eldorado dos Carajás, os 8 da Candelária e os 21 de Vigário Geral.

Links interessantes para ir além na análise desse outro lado da história:

Ilustração da maneira como a maior formadora de opinião está sendo tendenciosa nos assuntos que dizem respeito ao governo italiano e ao escritor Cesare Battisti
Assista esse vídeo acima. É de dezembro de 2010, uma manifestação contra o governo Berlusconi, os crimes dos quais ele é acusado e à blindagem judicial que faz com que ele não seja obrigado a prestar contas à justiça sobre nada. Veja a real dimensão da manifestação publica que foi tratado pela grande imprensa brasileira como se fosse um tumulto de arruaceiros.
Compare com o tamanho das manifestações na mesma Roma, contra o asilo político dado pelo Brasil a Battisti ( no video abaixo). Agora responda: quem é o verdadeiro inimigo público?
O vídeo acima é a íntegra da matéria do jornal nacional sobre a reação italiana ao asilo político dado a Battisti.

1 - Notem como o enquadramento dos takes da manifestação são fechados para fazer que a concentração é maior, mas mesmo assim fica claro que causou uma indignação popular muito menos do que a corrupção do governo mostrado no outro vídeo.

2 - preste atenção no texto: "(...)nos anos 70, quando a democracia no país sofria ataques de grupos de extrema esquerda". A matéria omite que nos anos de chumbo grupos ligados à extrema direita (fascista), à mafiosa, cometiam atentados a bomba, assassinavam juízes, jornalistas e intelectuais. Havia tortura nos interrogatórios, o que questionável se o termos como "Democracia" ou "Estado Democrático de Direito" possa ser aplicado. Resumindo: a Globo mente, omitindo a maior parte da história

3 - Veja quanto tempo o ministro teve para falar na matéria. Quanto tempo Battisti falou? E a mulher e a filha dele, quanto tempo tiveram de voz na reportagem? E o comitê pela libertação de Battisti?  E OS HISTORIADORES????? Os advogados do escritor só foram citados indiretamente e de passagem no fim da matéria.

4 - Prestem atenção no texto por volta dos 2min5seg "Primeiro Ministro da Itália se encontrou com Alberto Torregiani que ficou paraplégico e perdeu o pai em um dos crimes atribuídos ao grupo integrado por Cesare Battisti". Mais uma vez note como o telespectador é induzido a uma interpretação errada. O ataque que mandou Alberto para a cadeira de rodas foi cometido por integrantes do PAC, mas o próprio Alberto já testemunho que Cesare não estava presente e que o tiro que o deixou paraplégico partiu da arma do pai dele, Pierluigi Torregiani, militante da direita que trocou tiros com os membros do PAC em sua loja.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Um olhar sobre a década (que acabou de acabar)

Carlo Giuliani, manifestante assassinado pela polícia italiana durante
protestos ocorridos por
 causa de reunião do G-8 em Gênova 2001
(Jornal do Povo, Rio Grande do Sul, edição especial 31/12/2010 e 01/01/2011)


por Leandro Cruz
O defunto da década ainda não esfriou. Além disso, esse fim de década é uma questão arbitrária, pois ciclos históricos não coincidem necessariamente com o fechar de datas redondas. E mais, vale lembrar que o ano 1 d.C foi fixado como sendo aquele que chamamos de ano 1 d.C só em 526 d.C. Porque no ano 1 Jesus era só uma criança pobre e desconhecida de uma distante colônia romana que ninguém imaginava que um dia dividiria a contagem do tempo em quase todo o mundo. Aliás, as indicações bíblicas de que ele teria nascido durante o recenseamento de César Augusto, quando Quirino era governador da Síria e Herodes Magno ainda era melek dos judeus, causam uma coincidência de datas que vai de 6 a.C a 4 a.C (quando Herodes morre). Ou seja, o monge Dionísio, que fez as contas, errou. Se tivesse acertado, a primeira década do século XXI teria acabado há uns 5 anos.

Passeata de abertura do Forum Social Mundial de 2003 reuniu
150 mil pessoas sob o lema "Um outro mundo é possível"
Mesmo assim, é inevitável que a cada data redonda reflitamos sobre os últimos 10 ou 100 anos. O julgamento histórico adequado sobre o que de fato fica dessa década, só um olhar mais distante temporalmente poderá fazer. Qualquer balanço pode apresentar distorções, principalmente num mundo em que governos e empresas privadas têm dedicado grande esforço em não deixar as verdades inconvenientes chegarem às pessoas, e podemos não estar vendo muitas coisas.

Sabemos que na década morreram João Paulo II, a ovelha Dolly, Slobodan Milosevic, Pinochet, Zilda Arns, Ahmed Yassin, Reagan, Brizola, Arafat, Fernando Sabino, Will Eisner e tantos outros.

Garoto palestino passa em frente a grafitti com
imagem do líder Yasser Arafat. morto em  2004
Mas também nasceu muita gente ainda tão alheia ao mundo como era o pequeno Jesus no pseudo-ano 1 d.C. Só no Brasil, hoje temos 21 milhões de habitantes a mais em relação a 10 anos atrás. Apesar dos problemas óbvios que esse crescimento causa, dessa multidão podem sair pessoas que marquem profundamente a História desse século (para bem e para mal. Não sabemos).

Apesar das distorções, algumas análises podem ser feitas olhando dados numéricos já bem estabelecidos, como por exemplo:

Civis mortos devido aos conflitos armados no Iraque desde a invasão em 2003 = 108.391.

Número de armas de destruição em massa encontradas naquele país (que foram as alegadas razões da guerra) = 0.

No Brasil, temos também números perturbadores:

Salário dos deputados federais = R$ 26.000,00 (+ benefícios).

Salário mínimo do trabalhador brasileiro = R$ 540,00.

Desenho de um aluno da escola primária Al Assail,
de Bagdá, feito em 2003
Os dados acima ilustram um pouco como as coisas estão no Brasil e no mundo. Por aqui, continuamos a ter uma estrutura de Estado corrompida, que favorece a poucos e se baseia no clientelismo, onde mudanças estruturais parecem longe de ocorrer. Pensando na década, lembro de dólares em cuecas, ministro da Casa Civil chefiando quadrilha, fraude no Detran do RS, nomeações secretas no Senado. Tanta lama em tão poucos anos... O triste é que essas coisas esperam semanas, e não anos, para sumirem da lembrança das pessoas. Quantos se lembram da (até hoje mal explicada) manobra de retirada de assinaturas do pedido de abertura da CPI da corrupção que investigaria as denúncias contra o governo FHC, por exemplo?

Em 2010, um ano em que 60% do povo que inventoua democracia
boicotou as urnas, o ministro conservador Kostis Hatzidakis
entendeu o quanto as pessoas de andam bravas com políticos
safados e subservientes a estrangeiros
Já os números da guerra nos lembram que a “globalização”, tão celebrada na década anterior, não significou o cumprimento das promessas de desenvolvimento econômico e humano falso profetizadas pelos neoliberais. Nesse globo "linkado", vemos grupos querendo impor visões de mundo e modos de vida ao resto da humanidade. Radicais islâmicos jogam aviões em prédios para impor a ideia de que todos devem abraçar essa religião, inclusive em seus dogmas sexuais. Radicais capitalistas jogam bombas para dominar as fontes de recursos naturais e impor que as pessoas consumam seus produtos, independentemente de seu impacto ecológico e humano.

Ainda há a ala da esquerda latino-americana que tende ao autoritarismo chegando ao poder em nosso continente: amordaçando a imprensa e a internet, mandando dissidentes para a cadeia ou para a cova. Uma espécie de bonapartismo em que um líder toma o poder em nome do povo, dos favorecidos, depois militariza o país, acaba com a liberdade e governa de fato para um grupo restrito.

Jovens espanhóis usam máscara do personagem "V"
(o poético ativista anarquista, personagem do romance
gráficode Alan Moore) em protesto pela libertação do
criador do Wikilwaks
Penso que o verdadeiro embate da próxima década não será entre ocidente e oriente, entre esquerda e direita, mas entre o autoritarismo centralizador e a liberdade do homem, já que no fim das contas Bin Laden, Sarah Palin, Chávez, Hu Jintao e Bento XVI tem mais em comum do que pode parecer à primeira vista.

Por outro lado, vemos na resistência hackers lutando pela democratização da informação. Vemos jovens italianos e gregos indo às ruas com disposição de enfrentar a infiltração da máfia em seu governo ou a precarização de direitos impostos pela União Europeia (que se demonstrou criada para os grupos econômicos, e não para o povo). Vemos pensadores libertários em plena atividade, como Hakim Bey e John Zerzan se popularizando. Vemos pessoas recusando o autoritarismo da sociedade de consumo e optando por estilos de vida mais frugais e sustentáveis. Vemos artistas legítimos independentes se organizando em coletivos ou atacando sozinhos, como o britânico Banksy ou o brasileiro Thiago Vaz, furando os bloqueios da grande indústria cultural.
Jovens de diferentes países trabalham em multirão levantando mais
uma casa sustentável na ecovila Dancing Rabbit, nos EU
A

Ainda não é possível saber que veredicto a História dará à década de 2000, mas dá pra ver que os anos 10 serão verdadeiramente desafiadores. Ansiamos por paz, aquela que conforme bem dizia o polonês Karol Józef Wojtyla "exige quatro condições essenciais: verdade, justiça, amor e liberdade".

Twitter: @leandrojacruz