sábado, 19 de março de 2011

O plano das bicicletas brancas

Coluna "Viagem no Tempo" de 19/03/2011 - Jornal do Povo - Rio Grande do Sul
Jovens holandeses celebram doação de mais uma bicicleta branca em1966, que passam a "vir" com fotografias da repressão policial ao movimento anticarro. Na verdade, a violência da Polícia só contribuía para a popularização da iniciativa

Desde junho de 1964 a “bagunça” se repetia todos os sábados. Ao redor da estátua do Moleque de Rua, uma multidão se reúne para celebrar. São jovens empregados do porto, desempregados, cabeludos, beatniks, vagabundos, estudantes, fumadores de maconha, anarquistas, pacifistas e também gente que simplesmente não tinha nada melhor pra fazer aos sábados e resolveu ir ver o tal maluco do turbante. Um feiticeiro africano de cara pintada recita mantras contra o consumismo, a indústria do cigarro, os automóveis, a bomba atômica e tudo mais que lhe vem à cabeça.
Então ela chega, carregada no alto pela multidão em êxtase, da mesma maneira como carregam os santos nas procissões católicas. Ela: a primeira bicicleta branca.
No happening convocado pelo boca a boca e por panfletos e fanzines independentes, aqueles jovens e o maluco artista performático Robert Jasper Grootveld (o falso feiticeiro africano) estavam começando o grande sacolejo no pensamento ocidental que sacudiria o mundo nos anos 60: a contra cultura. Em vez de “cair fora” como os beats norte-americanos, eles decidiram participar diretamente da vida de sua sociedade. À sua maneira, mesmo que pudesse parecer excêntrica, tinham propostas reais para sociedade.
O plano das bicicletas brancas, elaborado por Laurens (Luud) Maria Hendrikus Schimmelpennink, tinha um pouco de Ghandi, um pouco de dadaísmo e um tanto de inconformismo com a falta de espaço. Nos anos 60 os automóveis já eram a principal causa de morte entre a população jovem. Além disso, o ar andava poluído e o trânsito e os estacionamentos haviam tomado todo o escasso espaço público das cidades dos países baixos. Os “cabeludos” chegam a escrever à Prefeitura de Amsterdam pedindo apoio para o projeto que consistia em espalhar milhares de bicicletas brancas públicas pela cidade. O trânsito para automóveis deveria ser fechado para o tráfego de automóveis. Quem quisesse usar uma bicicleta branca deveria simplesmente pegá-la, usá-la e deixá-la em algum canto para o próximo que precisasse. A Prefeitura sequer respondeu a carta. Mas os “provos” (provocadores), como ficou conhecido o movimento (que também seria a ponta de flecha para a futura aprovação do casamento guei e da descriminalização da maconha naquele país), convocavam quem quisesse doar suas bicicletas para o bem comum que comparecesse ao happening de Grootveld para que ela fosse pintada de branco.
Outra ação consistia em criar o hábito entre os jovens de pedalar na contramão, atrapalhando o tráfego de carros. Além disso, havia o “plano do cadáver branco”, que consistia em desenhar de forma indelével nas ruas o contorno do corpo de cada vítima fatal do trânsito, de modo que ninguém se esquecesse da real dimensão da ameaça da violência do trânsito. Os mais “esquentadinhos” organizaram grupos de vingadores, prontos para pichar e arranhar carros com escapamento desregulado, apressadinhos e atropeladores. Se torna hábito passar por cima de carros parados sobre as faixas de pedestre. Mas a celebração na pracinha com a estátua do moleque.
“Ainda hoje Amsterdam é a cidade do mundo ocidental mais respeitosa com os próprios ciclistas e mais punitiva com os motoristas”, afirma Matteo Guarnaccia, em seu "Provos: Amsterdam 1960-67 - gli inizi de la contracultura" (lançado no Brasil pela Editora Conrad). Mas até chegar a isso, muita gente iria apanhar... E rir.
Os “happenings” noturnos (mistura de teatro, brincadeira coletiva e protesto político), comandados pelo multicolorido palhaço feiticeiro, são reprimidos violentamente pela Polícia, que alega que isso “atrapalha o trânsito”. Mais de 50 bicicletas brancas são apreendidas (roubadas) pela Polícia, que afirma que a ausência de travas e cadeados nas bicicletas encontradas “abandonadas” eram um incentivo ao furto. Em resposta, bicicletas da Polícia aparecem pintadas de branco. O bixo pega, mas a Polícia não sabe o que fazer contra os “maconheiros metidos a Gandhi” que se deixam prender (até não ter onde mais botar gente) e, em vez de correr ou revidar, gargalham e imitam galinha quando a força policial chega com sabres, gazes e cassetetes.
A febre “provo” se espalha pelo mundo. Bicicletas brancas e happenings surgem na Espanha, na Bélgica, na Itália. A música exalta esses precursores do ambientalismo moderno até nos Estados Unidos.
Hoje em Amsterdam, bem como em Sevilha ou Barcelona, basta fazer carteirinha para usar os serviços públicos de bicicleta (o Estado se rendeu à boa ideia dos anarquistas) e deixá-la em qualquer outra “estação”. Quem não devolve a bike dentro de determinado tempo toma multa e é suspenso, mas isso não acontece com frequência. Há ciclovias e serviços de bicicletas públicas ou de aluguel simbólico em Paris, Estocolmo, Oslo, Denver, Helsink, e a maioria inaugurados tardiamente, nos anos 2000, mas de inegável inspiração holandesa sessentista, só levadas a cabo agora que o CO2 bateu no selim.
Bicicletas brancas também se espalham pelas ruas do México, mas lá elas são monumentos fixos onde ciclistas foram atropelados.
Além das bicicletas, a ideia de criatividade e a proposta (não só a reclamação) nos protestos é o maior legado dos “provos” (antecessores de qualquer hiponga e qualquer punk). Tanto que até hoje a tribo dos ciclistas é que promove as manifestações mais criativas, como a “pedalada pelada”, e, mesmo quando em pequeno grupo, conseguem grande visibilidade para suas causas. Fazendo-se ouvir apesar do forte lobby da indústria automobilística.

Leitores. É claro que o espaço dessa coluna é limitado e o objetivo é despertar o debate e o interesse pelos temas abordados. A revolução Provo foi muito além do Plano das Bicicletas Brancas e deixa várias lições à juventude do século XXI. Deixo a dica do livro "Provos; amsterdam e o nascimento da contracultura"(OK, M. T. Mhereb, eu sei que estou com o seu emprestado. Te devolvo mês que vem, quando eu voltar a São Carlos ;-) ) e um vídeo do criador do plano das bikes brancas.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Uma revolução (ou reforminha) para chamar de “sua” (3)

Se você não leu as duas outras partes dessa trilogia (1, 2), não tem problema. Os texto podem ser lidos fora de ordem ou mesmo separadamente. Obviamente existe uma coesão e uma ligação entre eles mas que não anula a compreensão e propósito de cada um deles.


De 1985 a 1990, aliados do presidente Sarney ganharam lotes de tudo e juraram lealdade, como no velho esquema feudal. Assim como minérios do subsolo e rios, o espectro eletromagnético, por onde passam as ondas AM, FM, UHF e VHF, é um recurso natural finito, pois a quantidade de faixas de onda, que atravessam nossos corpos, é limitada. A distribuição do direito de exploração, concessão pública, desse recurso natural, o espectro eletromagnético, seguiu critérios políticos. Sarney, eleito por uma bactéria, e seu então ministro das Comunicações, o oligarca baiano Antônio Carlos Magalhães, do PFL (atual DEM), distribuíram concessões para aliados políticos. As próprias famílias Sarney e Magalhães controlam a Globo de seus estados. Existem verdadeiros “latifúndios eletromagnéticos”, de rádio e de TV no Brasil. Tudo isso em nome de apoio para que ele permanecesse um ano a mais na presidência e garantir que ele conseguisse lançar as bases do sistema que o manteriam no poder até hoje.

A “redemocratização” foi uma conquista histórica, mas deixou tanto por fazer que, com Constituição e tudo, não acabou com a concentração de riqueza, nem dos meios de produzi-la. Sob a tutela de Sarney e do PFL (que hoje teatralizam estar em lados opostos), agravou-se a concentração dos meios de produção de ideias.
O empresário Roberto Marinho caminha
de braços dados com Antônio Carlos
Magalhães (PFL) oligarca baiano que foi
ministro das comunicações de Sarney,
presidente do Senado, e etc
O loteamento também ocorre de outras formas. A criação de três novos estados nas zonas de influência de Sarney significou a criação de um aparato burocrático dispendioso, cargos, obras de palácios para empreiteiros se esbaldarem e, sobretudo, mais NOVE vagas no Senado. Seria lindo se isso rendesse maior representatividade para a população dos lugares, mas, com monopólio da informação e regras do jogo criadas para dificultar mudanças, o cabresto permanece. O próprio Sarney, do Maranhão, foi se sentar numa das cadeiras do recém-criado Amapá tão logo deixou o Planalto. Não se levantou até hoje. Durante quase todo esse tempo, ou esteve na presidência da Casa, ou teve um grande compadre/comparça/companheiro no trono (Renan, ACM, Lobão, Garibaldi...). Esse ano o próprio coronel eletrônico foi eleito presidente do Senado, pela quarta vez, com votos tanto do bloco de aliados do governo e da "oposição". A rede de suserania e vassalagem está acima de qualquer etiqueta de agremiação.
O que, por exemplo, justifica os planos de alagar 400 mil hectares de floresta, onde vivem 40 mil pessoas? A hidrelétrica de Belo Monte vai gerar refugiados de minorias étnicas que o resto do Brasil até esquece que existe porque a TV não os mostra. O impacto no ciclo de vida dos peixes no Rio Xingu ameaça a vida de povos milenares e o equilíbrio de todo o bioma amazônico.
1986: presidente José Sarney chega para inauguração
de expansão da planta industrial da Alumar, onde
constantemente acontecem acidentes de trabalho
não noticiados pelas TVs amigas do poderoso senador
As TVs dos amigos do Sarney repetem que “a usina terá capacidade para abastecer 35 milhões de brasileiros”, mas toda a Região Norte tem 15 milhões de habitantes! Belo Monte está no meio do caminho entre as jazidas de bauxita, no Amapá, e a indústria e porto da Alumar, no Maranhão. Só 10% do alumínio ali produzido fica no Brasil. E o lucro? A Alumar é um consórcio Alcoa, BHP Billiton e RioTintoAlcan (sim, a que destruiu Bougainville). Para transformar a bauxita, o insumo principal é energia elétrica. Em troca do que? Quem ganha? Fiquem à vontade para pesquisar sobre o assunto. Também sobre as demissões no Ibama e as indicações no setor elétrico.
É democracia quando as pessoas não são informadas sobre questões como essa, nem sobre como elas são decididas? De contratação no Senado ao deslocamento de populações inteiras para enriquecer gente em empreiteiras, na Eletronorte e na Alumar, o processo decisório no Brasil não parece ter legitimidade popular. Eleições de políticos “progressistas” dentro desse sistema e dessa cultura política não adianta grande coisa. Temas importantes não são debatidos nunca. “Eu vejo o futuro repetir o passado” gritava em 1988 o profético Cazuza, decepcionado com as limitações da “redemocratização”. Claro que, graças à democracia, o Brasil avançou em aspectos como controle da inflação, direitos humanos e acesso à alimentação, sobretudo nos últimos 16 anos, mas esse artigo é sobre as permanências estruturais, e não sobre as ainda não solidificadas melhorias conjunturais.
Representantes de povos que terão suas terras devastadas
pela barragem de Belo Monte protestam contra usina
de Belo Monte, que  beneficiará corporações extrangeiras
e aliados de Sarney
Eles estão longe e não nos ouvem. São punidos se obedecem os representados em vez de seus “líderes”. O Brasil precisa de transformação política para resolver os problemas da democracia com mais democracia. Pra que as pessoas é que definam o rumo do Estado, e não o contrário. Um debate plural e profundo precisa acontecer em toda a sociedade para exigir participação direta e legítima no processo.
No entrementes da publicação dessa “trilogia”, o Senado instaurou uma comissão para a “reforma política”. Adivinha quem a preside? Ele quer mais uma reforminha para chamar de sua.
No fim dos anos 80, o p(r)o(f)eta Cazuza grava "O Tempo Não Pára", música que retrata o clima de descontentamento e de frustração com os avanços que a "Redecratização Sarneyliana" não provocou: "Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro; Transformam o país inteiro em um puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro (...) Eu vejo o futuro repetir o passado. Vejo um museu de grandes novidades"

Para quem quiser saber mais sobre a nefasta relação entre grande mídia (em especial a Rede Globo) e poder sugiro o documentário "Muito além de Cidadão Kane". O filme conta com ótimos depoimentos de Chico Buarque de Holanda, Lula, ACM, entre outros.
Roberto Marinho conseguiu na Justiça que o documentário não fosse exibido no Brasil (que belo fim de censura esse do Brasil, não?), mas o internauta pode assistir gratuitamente clicando nos links abaixo:
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